Thursday 21 November 2013

Às vezes perdemo-nos profundamente. Perdemo-nos quando perdemos um ente querido, quando nos dizem que não somos tão inteligentes ou tão engraçados ou tão tolerantes quanto pensamos ser. Quando nos roubam o telemóvel e de repente não podemos fazer uma chamada quando a caminho de casa, sozinhos, e sem saber o que fazer às mãos. Sentimo-nos muitas vezes perdidos, é isso. Mas muitas vezes não imaginamos o quão desesperante será realmente perdermos a nossa voz. Digo voz exterior, mas também interior. Falo, para ser mais precisa, da perda da linguagem, das nossas palavras: a forma de comunicação que aprendemos para nos fazermos existir no mundo exterior, mas, sobretudo, a comunicação que aprendemos a estabelecer connosco próprios a partir do cruzamento deste mundo exterior concreto com a nossa experiencia dele.  
Nunca vos aconteceu? Sentir a batalha entre lábios, língua e saliva, e gritos, sussurros, sorrisos, tristeza, amor, repulsa? Mas este desacordo entre exterior e interior existe de uma forma tanto mais dolorosa quando somos privados do uso da nossa linguagem mais intima. Isso levar-nos-á também a perdemo-nos com mais facilidade e, para sobreviver, é por vezes necessário adaptarmo-nos para que nos possamos re-situar. 

Por exemplo, ao atravessar a Golden Gate em São Francisco e observando as águas da entrada da baía, talvez pairem sobre elas as palavras Tejo, destino, adeus, ou estava em paz quando atravessei a ponte 25 de Abril naquele dia. Rio é isto, na linguagem da consciência, mas river poderá materializar novas ideias e acrescentá-las às vivências anteriores.
E se, ao passar numa rua, o súbito cheiro a sardinhas assadas é suficiente para nos impedir de continuar ao ritmo da pressa e da abstracção, pois nos assalta a sensação de que estamos mais perto de casa? As palavras Mar, Alecrim e Alfama poderão atravessar o oceano Atlântico e contaminar com os seus perfumes os odores do Central Park.     
E se enunciarmos poeticamente a palavra love? Talvez a nossa voz de dentro logo nos sussurre ao ouvido Amor é fogo que arde sem se ver.
E quando, à entrada de um bar no Harlem, uma voz nos lembra a tristeza do Fado, cantando-a, embora, na linguagem dos Blues?

Viajamos por terras cujo desconhecimento não advém só da distanciação física. 
Penso que, quando não nos é permitido dar corpo na nossa língua ao que sentimos e ao que pensamos, damos um longo passo em direcção ao desconhecido. Para evitar o silêncio e a alienação, por vezes uma das formas de não nos perdermos totalmente é a adaptação a uma nova língua que possa ser reflexo da nova realidade, mas que não anule as origens linguísticas. Por exemplo, as palavras café con leche, mama têm um sabor diferente quando pronunciadas por um nativo do Espanhol Mexicano e é bem possível que se afaste mais da fronteira quando obrigado a dizer coffee with milk, mother. Mas, talvez, com o passar do tempo, coffee with leche, mama passe a espelhar a realidade da existência de diferentes referências culturais.
Contudo, por vezes o que fica da nossa linguagem apenas vive no nosso consciente, o que não impedirá que ela de alguma forma se infiltre secretamente naquilo que de novo é dito. O que quero dizer é que somos uma série de inscrições na linguagem e que a memória se constrói através de palavras e expressões que nos são tão intimas, que nunca se poderão desvanecer totalmente, mesmo quando nos afastamos da nossa fronteira.
Perder ou ignorar a nossa linguagem, é apagarmo-nos como seres.

- So gently I offer my hand and ask,
Let me find my talk
So I can teach you about me.

Rita Joe, I Lost My Talk 1

1 ARMSTRONG, Jeannette. GRAUER, Lally. Native poetry in Canada :  a contemporary anthology.  ed: Broadview, Toronto 2001


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