Às vezes
perdemo-nos profundamente. Perdemo-nos quando perdemos um ente querido, quando
nos dizem que não somos tão inteligentes ou tão engraçados ou tão tolerantes
quanto pensamos ser. Quando nos roubam o telemóvel e de repente não podemos
fazer uma chamada quando a caminho de casa, sozinhos, e sem saber o que fazer
às mãos. Sentimo-nos muitas vezes perdidos, é isso. Mas muitas vezes não
imaginamos o quão desesperante será realmente perdermos a nossa voz. Digo voz
exterior, mas também interior. Falo, para ser mais precisa, da perda da
linguagem, das nossas palavras: a forma de comunicação que aprendemos para
nos fazermos existir no mundo exterior, mas, sobretudo, a comunicação que
aprendemos a estabelecer connosco próprios a partir do cruzamento deste mundo
exterior concreto com a nossa experiencia dele.
Nunca vos aconteceu? Sentir a batalha entre lábios, língua e saliva, e
gritos, sussurros, sorrisos, tristeza, amor, repulsa? Mas este desacordo entre
exterior e interior existe de uma forma tanto mais dolorosa quando somos
privados do uso da nossa linguagem mais intima. Isso levar-nos-á também a
perdemo-nos com mais facilidade e, para sobreviver, é por vezes necessário
adaptarmo-nos para que nos possamos re-situar.
Por exemplo,
ao atravessar a Golden Gate em São Francisco e observando as águas da entrada
da baía, talvez pairem sobre elas as palavras Tejo, destino, adeus, ou estava em paz quando atravessei a ponte 25 de Abril naquele dia. Rio é isto, na linguagem da consciência, mas river poderá materializar novas ideias e acrescentá-las às
vivências anteriores.
E se, ao
passar numa rua, o súbito cheiro a sardinhas assadas é suficiente para nos
impedir de continuar ao ritmo da pressa e da abstracção, pois nos assalta
a sensação de que estamos mais perto de casa? As palavras Mar, Alecrim e Alfama poderão atravessar o oceano
Atlântico e contaminar com os seus perfumes os odores do Central Park.
E se
enunciarmos poeticamente a palavra love?
Talvez a nossa voz de dentro logo nos sussurre ao ouvido Amor é fogo que arde sem se ver.
E quando, à
entrada de um bar no Harlem, uma voz nos lembra a tristeza do Fado, cantando-a,
embora, na linguagem dos Blues?
Viajamos por
terras cujo desconhecimento não advém só da
distanciação física.
Penso que,
quando não nos é permitido dar corpo na nossa língua ao que sentimos e ao que
pensamos, damos um longo passo em direcção ao desconhecido. Para evitar o
silêncio e a alienação, por vezes uma das formas de não nos perdermos
totalmente é a adaptação a uma nova língua que possa ser reflexo da nova
realidade, mas que não anule as origens linguísticas. Por exemplo, as palavras café con leche, mama têm um sabor
diferente quando pronunciadas por um nativo do Espanhol Mexicano e é
bem possível que se afaste mais da fronteira quando obrigado a dizer coffee with milk, mother. Mas, talvez, com
o passar do tempo, coffee with leche,
mama passe a espelhar a realidade da existência de diferentes referências
culturais.
Contudo, por
vezes o que fica da nossa linguagem apenas vive no nosso consciente, o que não
impedirá que ela de alguma forma se infiltre secretamente naquilo que de novo é
dito. O que quero dizer é que somos uma série de inscrições na linguagem e
que a memória se constrói através de palavras e expressões que nos são tão
intimas, que nunca se poderão desvanecer totalmente, mesmo quando nos afastamos da
nossa fronteira.
Perder ou
ignorar a nossa linguagem, é apagarmo-nos como seres.
- So
gently I offer my hand and ask,
Let
me find my talk
So I
can teach you about me.
Rita Joe, I Lost My Talk 1
1 ARMSTRONG, Jeannette. GRAUER, Lally. Native
poetry in Canada : a contemporary
anthology. ed: Broadview, Toronto 2001
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